O médico sanitarista disse que “o governo se manteve na posição de produzir imunidade de rebanho à custa de vidas humanas”
Para o médico sanitarista Claudio Maierovitch, que presidiu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2003 a 2008, a gestão do atual governo no que tange à pandemia de covid-19 indica que “a população brasileira é tratada como animais”. Ele fez essa declaração na sexta-feira (11), durante depoimento na CPI da Pandemia.
— Não gosto do termo “imunidade de rebanho”. Não somos rebanho, e não há nenhum coletivo da palavra “gente” ou “pessoa” que seja traduzido como rebanho. Temos multidão, povo, muitos coletivos nos dicionários, e rebanho não é um deles. Rebanho se aplica a animais, e somos tratados dessa forma. Acredito que a população tem sido tratada dessa forma ao se tentar produzir imunidade de rebanho à custa de vidas humanas. O governo se manteve na posição de produzir imunidade de rebanho, com essa conotação toda, para a população, em vez de adotar medidas reconhecidas pela ciência para enfrentar a crise — afirmou Maierovitch, que também chefiou a área de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde de 2011 a 2016.
Negligência
O médico lembrou que, antes da pandemia, o Índice Global de Segurança em Saúde de 2019, da Universidade Johns Hopkins, havia classificado o Brasil como o 9º país do mundo em respostas rápidas ao alastramento de epidemias e mitigação de suas consequências. O levantamento da Johns Hopkins também havia indicado o Brasil como o 22º colocado no Índice Global de Segurança em Saúde como um todo. Mas Maierovitch observou que, após quase um ano de pandemia, um levantamento do Instituto Lowy, da Austrália, de janeiro de 2021, qualificou o Brasil como o país com a pior resposta à covid-19, dentre 98 países pesquisados.
Para Maierovitch, as boas colocações conseguidas pelo Brasil no estudo da Johns Hopkins em 2019 foram resultado de um sistema implementado durante décadas — um modelo baseado no Sistema Único de Saúde (SUS), no Programa Saúde da Família e nos planos de emergência e contingência do sistema de vigilância em saúde, na Anvisa, em laboratórios públicos e privados, no Programa Nacional de Imunizações (PNI), além de entidades como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outros.
Mas esse modelo, afirmou o médico, teria sido deliberadamente negligenciado pela gestão de Jair Bolsonaro. Ele também argumentou que, para que todo o sistema funcionasse a contento na resposta à pandemia, seria necessária a articulação federal, o que não ocorreu.
— O que poderíamos ter tido desde o início? A presença do Estado, por exemplo, com um plano de contenção, antes de a pandemia entrar no Brasil, para detecção rápida, testagem, isolamento e rastreamento de contatos. Tínhamos experiência pra fazer isso no SUS. O plano deveria prever uma organização, com planejamento de insumos como oxigênio, kit de intubação, profissionais, etc. E com monitoramento, como estávamos acostumados a trabalhar com isso em diversas crises, com a construção de um Comitê de Operações de Emergência em Saúde acompanhando as respostas e as necessidades de cada estado — explicou ele, lembrando que este sistema funcionou bem em 2015 na resposta à epidemia de zika vírus.
Maierovitch ainda chamou o PNI em curso, no que tange à covid, de “pífio”. Acrescentou que o governo nem sequer determinou um plano para aquisição de imunobiológicos, com “um desestímulo oficial a que um grande laboratório nacional assumisse a produção de vacinas”. Ele também disse que faltou investimento na atenção básica, “o ponto do sistema mais fundamental para resposta à maior parte das epidemias”.
Vacinas
Ao responder a perguntas do relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), Maierovitch afirmou que a Lei 6.360/1976 não impede a assinatura de contratos para a compra de vacinas. O tema veio à tona porque Renan lembrou que, na quarta-feira (9), o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, alegou que essa lei só permitiria a compra de vacinas após a liberação da Anvisa.
— Essa lei não trata de contratos, não dá qualquer tipo de limitação em relação à celebração de contratos. E ela admite exceções, principalmente em casos de graves ameaças à saúde pública. Como exemplo cito aqui que uma parte importante das vacinas adquiridas pelo Brasil é comprada do Fundo Rotatório da Organização Pan-Americana de Saúde, que não tem registro no Brasil, mas tem certificado da Organização Mundial de Saúde (OMS), porque existe um dispositivo legal que abre exceções para compra de vacinas, medicamentos e outros produtos — afirmou Maierovitch.
Renan e o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), também perguntaram ao médico qual é a sua avaliação sobre os esforços do governo para comprar, por exemplo, cloroquina da Índia, ao mesmo tempo em que negligenciava a compra de vacinas. Para Maierovitch, foi justamente o fato de Bolsonaro negligenciar a “institucionalidade” tradicional da área de Saúde que lhe permitiu ações deste tipo.
— Qual o sentido de um presidente da República, sem se apoiar numa institucionalidade, decidir sobre a importação de um medicamento? Ele vai negociar com o dirigente da Índia apoiado em quê? Isso faz tão pouco sentido que é difícil encontrar um argumento legal que diga que pode ou não pode, porque significaria prever, me perdoem a expressão, qualquer maluquice que deveria estar na lei. Então os parlamentares teriam que fazer um exercício de imaginação contínuo para criar leis que proibissem maluquices — argumentou.
Base do governo
Senadores governistas procuraram se contrapor ao depoimento de Maierovitch. Para Jorginho Mello (PL-SC), o governo não negligencia a vacinação do povo. Ele defendeu que as negociações com o Instituto Butantan e com a Fiocruz foram “diferentes” porque esta última previu a transferência de tecnologia com a AstraZeneca.
— O ex-secretário Elcio Franco explicou aqui [em depoimento anterior na CPI]. O Butantan foi questionado se tinha a tecnologia ideal para a produção da vacina, e a resposta foi sim, que já possuía a tecnologia. Dessa forma, para que seja efetuada a compra, a legislação exigia a aprovação da Anvisa. No caso da Fiocruz foi diferente, a entidade não tinha a tecnologia. Então foi feito um contrato de transferência de tecnologia. Neste caso, a legislação permitia o repasse de recursos para o desenvolvimento da vacina. Foram coisas diferentes — argumentou Jorginho Mello.
O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) abordou, entre outros pontos, os repasses federais para estados e municípios e a retomada da economia.
— Os hospitais filantrópicos têm quase 30 mil leitos de UTI, já renovados aqueles valores que o ministério paga. São R$ 1,6 mil por dia e quase 30 mil leitos. No meu estado triplicaram os leitos de março do ano passado até março deste ano. No Brasil quase dobraram os leitos de UTI Covid. O Butantan recebe este ano mais de R$ 8 bilhões; a Fiocruz, R$ 7,5 bilhões. E vamos viabilizar o Complexo Santa Cruz, para vacinas — disse Heinze.
Já o senador Marcos Rogério (DEM-RO) abordou o protagonismo de estados e municípios no enfrentamento à crise, em contraponto à afirmação de Maierovitch de que o governo federal teria negligenciado a pandemia.
— Todos sabemos que estados e municípios forçaram a barra para terem o controle pleno das medidas de enfrentamento [à pandemia] em seus territórios, o que foi sancionado pelo Supremo Tribunal Federal. Não há como fugir dessa realidade. O senhor declarou que faltou em nosso país a adoção de critérios homogêneos definidos para o Brasil inteiro. A autonomia foi dada cada estado e município — disse o parlamentar.
Agência Senado